“Não se trata de ser advogado de marginal, mas, sim, advogado de um grupo marginalizado.”
Importante depoimento no The Intercept Brasil de um jovem negro da favela sobre sua vida e os esforços do seu pai para lhe dar um futuro. Leitura necessária para quem quer entender a realidade brasileira para além das cortinas de fumaça das redes sociais e da mídia corporativa brasileira. Destaquei alguns trechos. Para ler na integra clique aqui
“NASCI E FUI criado até os 6 anos pela minha avó na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio, o 121° IDH entre os 126 listados na cidade carioca. Filho de empregada doméstica, sempre que lembro da infância recordo da minha mãe contando as dificuldades de trabalhar em “casa de madame”, levando pão duro para casa no final do expediente. Meu pai trabalhou na fábrica de tecidos Nova América, que posteriormente virou o Shopping Nova América, famoso pelos outlets, na zona norte carioca. Após isso, ele trabalhou como terceirizado na Petrobras, não sei qual a função, mas me recordo da foto que ele ostentava com alegria onde usava o uniforme da empresa.
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Meus pais sempre se dedicaram pelos nossos estudos e concentraram suas vidas em cima desse objetivo. Assim como Nem da Rocinha entrou para o tráfico para pagar o tratamento de saúde de sua filha, meu pai também o fez por uma questão familiar. Possibilitar que seus filhos pudessem estudar, ter acesso a oportunidades e uma vida digna que jamais foi possível a ele e a minha mãe.
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Quando entrei na adolescência, o papo sobre fazer Direito começou. Ele queria um filho delegado. O cargo em si não tinha nenhuma justificativa aparente. O que ele desejava mesmo era um filho formado e em um cargo que valesse como um título, um atestado que você venceu na vida.
Imagina o que era para um cara que ganhava a vida no submundo do comércio varejista tirar um filho do morro e colocar em uma das maiores instituições do país. Seria, efetivamente, vencer a exclusão que o sistema nos impõe. Eu, impressionado pelos detetives policiais dos filmes americanos, me deixei levar e fui tomando gosto pela ideia. Confesso que iniciei a faculdade de Direito, já morando no interior do estado do Rio de Janeiro, também almejando a cadeira de delegado da Polícia Federal.
Como todo bom estudante de Direito, fui percebendo ao longo da graduação que o buraco era mais embaixo e que concurso nesse país virou um negócio, e cada vez mais elitizado. Porém, o curso de Direito se tornou uma paixão.
Não me lembro qual foi a primeira vez que ouvi de meu pai a frase “quando o Joel se formar, eu largo o tráfico”, mas me recordo de ouvir ele dizer isso incessantemente a partir da segunda metade da minha faculdade. Era nítido que ele levava aquela vida apenas para ver o filho com um diploma, fazer “um neguinho virar doutor”. Minha formatura parecia um marco na vida dele, quando tudo o que fez e o que deixou de fazer enfim faria sentido. Seria a prova que aquele tempo exercendo uma atividade demonizada aos olhos de alguns e necessária aos olhos de outros não fora em vão, que os fins, enfim, justificariam os meios.
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O objetivo do meu pai no comércio varejista era simples: criar e possibilitar aos seus filhos oportunidades de estudo e trabalho que, seguindo as regras “lícitas” do jogo do excludente sistema capitalista, beiram o impossível para um preto pobre da favela. Quantos advogados de favela você conhece? Juiz? Promotor? O judiciário é branco, elitista e classista. Como você vai falar que basta correr atrás ou em meritocracia para um cara que tinha 4 irmãos, aos 6 anos já morava em um colégio interno e que nunca me contou uma passagem da sua vida em que seu pai estivesse presente? Em 29 anos, nunca ouvi falar de meu avô paterno. Quando não se tem uma família minimamente estruturada, o ponto de partida é, literalmente, do zero.
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Quando expus minha história no Twitter, algumas pessoas comentaram como se meu pai tivesse me educado para “servir ao tráfico”. Cômico! Primeiro, seu desejo era que eu fizesse um concurso e virasse mais um engravatado burocrata a serviço do sistema. Segundo: foi uma briga lá em casa para que meus pais aceitassem minha escolha pela advocacia criminal.
Ele dizia aos amigos que eu poderia fazer tudo menos advogar “pra bandido”. Irônico. Mas graças às oportunidades que ele criou com o que estava ao seu alcance, pude perceber a tempo que meu sonho e missão era ser advogado criminal e ajudar a trazer ao asfalto o debate sobre o quanto é seletiva e racista justiça criminal, e ir para além da dicotomia do bem e do mal. Tentar mostrar, com a visibilidade do meu trabalho, que não se trata de ser advogado de marginal, mas, sim, advogado de um grupo marginalizado.”