9. Quase um anexo: o professor universitário como um intelectual erudito (seja cientista, artista, filósofo ou tecnológo)

Quase um anexo: o professor universitário como um intelectual erudito (seja cientista, artista, filósofo ou tecnológo)
O programa de estudos esboçado nas páginas anteriores poderia ser a base de uma reflexão sobre EaD que permita a nós professores maior clareza sobre esta modalidade de educação que parece ser o caminho escolhido pelas universidades para a sua expansão nesta primeira década do século XXI. Contudo, ao ser apresentada pela primeira vez no contexto do curso on-line sobre EaD para professores da Unisc, esta proposta encontrou algumas resistências que concentraram-se especialmente em torno de uma suposta dificuldade que os professores de outras áreas que não as ciências humanas teriam para a discussão destes tópicos.
Obviamente não compartilho dessa visão e insurjo-me contra a divisão da universidade em “duas culturas”, a das humanidades (uma cultura “cultural e humanista”) e a das ciências da natureza e engenharias (uma cultura “tecno-científica”). Penso que não tem fundamento a perspectiva segundo a qual os professores das “humanidades” estariam mais à vontade nessa discussão porque os temas e textos disponíveis são da área das ciências humanas. Penso que não são. Penso que a discussão é sobre educação e tecnologia, sobre as transformações no papel do professor devido à introdução de NTIC na educação, sobre o processo de construção do conhecimento em ambientes virtuais ou através de processos de comunicação mediados por redes de computadores. Ora, o que nós temos em comum, nesta discussão é o fato de que todos somos professores. Portanto, qualquer que seja a área de conhecimento de nossa formação acadêmica, todos temos algo a dizer (seja de leitura, seja de vivência) a respeito da prática de professor. Qualquer um de nós, por ser professor, tem algo a dizer sobre ser professor. E sobre como esse ser professor é afetado (com maior ou menor intensidade) pela introdução das novas tecnologias. Do mesmo modo, como trabalhamos com isso todos os dias – seja ensinando alunos, seja orientando pesquisas de estudantes de graduação ou de pós-graduação ou ainda conduzindo pesquisas e coordenando equipes de trabalho e monitores – também temos algo pensado e algo a dizer sobre como se conhece e como se produz conhecimento.
Entendo que a ciência é uma só em seus princípios básicos. Portanto, todo/a cientista ou pesquisador/a universitário/a (seja ele/ela sociólogo ou astrônomo, biólogo ou geógrafo) precisa ter uma reflexão epistemológica e, portanto, necessariamente tem de realizar certas leituras indispensáveis (alguns gregos pré e pós socráticos, os modernos como Popper, Kuhn, Bachelard, alguns pós-modernos, alguma coisa sobre a teoria da complexidade e sobre as epistemologias construtivistas etc) para orientar sua prática. Da mesma forma, os principais métodos usados na comunidade científica são comuns às ciências humanas e às ciências naturais.
Assim, penso que os dois grandes temas do programa de estudos proposto acima são a) o ofício de professor e b) a produção do conhecimento no contexto da sociedade informacional. Isso pode ser formulado assim:
a função do professor nos programas de EaD baseados em ambientes de aprendizagem colaborativa construídos através de redes de interações mediadas por redes de computadores;
as possibilidades da construção (individual ou coletiva) de conhecimento através da constituição de comunidades de aprendizagem construídas através de redes de interações mediadas por redes de computadores.
Claro que é possível formular isso de um modo mais simples. Com essa formulação quis alcançar um maior nível de generalidade, mas isso precisa ser melhor especificado de modo a chegar a questões mais concretas, que são as questões que estão em pauta no cotidiano do trabalho docente hoje em dia, seja qual for a área de conhecimento do professor. Portanto, a discussão afeta a todos e todos têm a mesma possibilidade de participar dela, assim como as mesmas dificuldades.
Evidentemente que sei que nada que “afeta igualmente” uma comunidade afeta verdadeiramente “igualmente” a todos os membros dessa comunidade. Cada um tem seus recursos individuais, a sua trajetória, as suas estratégias, as suas preocupações, as suas necessidades, os seus gostos, as suas relações, cada um ocupa posições diferenciadas e tem, por isso, perspectivas diferenciadas. Certo, claro, mas, mesmo considerando todas estas especificidades, a discussão sobre o conceito de educação e sobre a função e a responsabilidade do professor é uma discussão que já devia fazer parte da prática reflexiva de cada um (mesmo que em níveis diferentes) ainda antes de o tema da EaD ser colocado em pauta.
Trata-se de algo que está no horizonte das preocupações e das práticas de todos nós pelo simples fatos de sermos professores universitários: o que é ser professor?, o que é educar?, o que é orientar?, o que é formar profissionais?, o que é formar cidadãos?, o que é formar cientistas? Estas são questões que nos afetam a todos e para as quais, com certeza, cada um de nós, em diferentes situações e condições, já se viu obrigado a ter respostas para poder continuar trabalhando.
Assim, nenhum de nós, simplesmente por ter formação acadêmica nessa ou naquela área do conhecimento tem, em príncipio, mais facilidade ou autoridade para fazer esta discussão. Cabe lembrar que este tipo de questões vêm sendo debatidas há um bom tempo na área da administração e nas diferentes ciências organizacionais assim como nas engenharias, na área da comunicação, na informática. Os primeiros a formar comunidades virtuais e fazer trabalho colaborativo foram engenheiros e cientistas das chamadas hard sciences. Quem propõe a mais aguda discussão sobre o tempo na modernidade é um prêmio Nobel de química, o Illya Prigogine. E as reflexões mais interessantes sobre educação nos últimos tempos giram em torno da obra do Maturana, que é biólogo e chama a sua área de biologia do conhecimento. E por falar em biólogo que escreve sobre educação, lembremos de Piaget. Ou de Gregory Bateson, biólogo que tornou-se sucessivamente antropólogo e psicoterapeuta e desenvolveu uma teria da aprendizagem bastante complexa.
Claro que por trás de tudo têm os filósofos, muitos filósofos. Mas os filósofos, para poder participar da discussão com os cientistas, precisam dar conta do pensamento científico, do tratamento das evidências empíricas, das descobertas mais importantes da física, da química, da biologia, da lingüística, da antropologia etc. E os cientistas, por seu lado, têm de dar conta de ler filosofia. Prigogine, por exemplo, abre o prólogo de seu livro “O fim das certezas” citando Popper. E faz uma referência a Epícuro no primeiro parágrafo do primeiro capítulo. Cientistas tratam de filosofia, filósofos debatem as possibilidades da ciência, pedagogos estudam neurobiologia, sociólogos estudam cibernética, administradores estudam psicologia, matemáticos estudam lingüística, lingüistas estudam antropologia, físicos estudam teologia etc. Todos saindo de seus nichos e buscando conexões holísticas em seus conhecimentos.
E com isso tento concluir (ainda que provisoriamente) esta intervenção que já se estende para além do razoável. Mas não sem antes explicitar o que os dois parágrafos anteriores deixam implícito: assumo, como premissa de toda a reflexão, uma concepção de professor universitário como um intelectual erudito, em condições de participar de debates sobre epistemologia, métodos científicos e concepções pedagógicas, e ao mesmo tempo com um agudo senso de responsabilidade cidadã com o seu tempo e a sua comunidade e com um profundo domínio de seu campo de saber. No caso específico da EaD (mas provavelmente não apenas para EaD) também é requisito fundamental para este professor um amplo domínio das ferramentas tecnológicas específicas, um bom conhecimento da lógica informacional e alguma afinidade com o mundo virtual propiciado pela internet.

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