A aula universitária
Para observar a aula como um evento comunicativo constitutivo da escola e da universidade3 é importante ter clareza sobre os fatores condicionantes da situação de aula. A seguir me dedico a tentar fazer uma descrição de aula válida para o ambiente universitário.
Começamos por caracterizar o fenômeno: a aula entendida como segmento semanal de um programa de 17 encontros de aproximadamente 3,5 horas-aula cada (registre-se que a hora aula não é equivalente à hora relógio). Simultaneamente à aula precisamos dar conta de uma multiplicidade de outras atividades, desejos e premências (inclusive outras aulas, de outras disciplinas). Mesmo se deixarmos de considerar todas as demais dimensões da vida de cada um e nos ativermos apenas ao ambiente acadêmico, fica evidente a complexidade, fragmentação e simultaneidade do trabalho desenvolvido: estudantes e professores precisam atender em torno de 5 disciplinas diferentes, muitas delas sem nenhuma conexão ou relação entre si; existem períodos em que acumulam-se as provas a prestar ou a corrigir, os trabalhos e pesquisa que têm prazo para concluir. É preciso comparecer a reuniões, assembléias, colegiados, etc. enfim, atividades as mais diversas se sobrepõem, não se articulam e podem até parecer ou vir a ser contraditórias e contraproducentes. E em meio a isso tudo temos a aula: 3,5 horas por semana com cada turma (ou com cada professor, do ponto de vista dos alunos).
Para que se obtenha algum aproveitamento em termos de construção de conhecimento nesta situação adversa, é preciso um pacto bastante explícito sobre investimento de tempo, esforço e desejo. Desejo, aliás, é o componente mais importante deste investimento. Primeiro, porque é o desejo que dá sentido ao esforço e ao investimento de tempo. Mas, principalmente, porque ou há um desejo de saber, de descobrir, de aprender, ou não há construção de conhecimento possível4.
Vou tentar deixar mais claro como eu entendo que precisa ser uma aula em um curso universitário. Deve ser um ambiente que propicie um elevado nível de troca entre professor e alunos e destes entre si. A aula (as 3,5 horas semanais que passamos juntos em sala de aula) deve ser um momento de discussões e debates intensos e profundos, cujo combustível – idéias, dúvidas, perguntas, afirmações, documentos, dados, fotos, textos, filmes, etc – precisa ser produzido, pesquisado ou localizado geralmente fora da sala de aula: na biblioteca, no laboratório, nos corredores da universidade, no bar, na rua, em casa, no ciberespaço. Então: para uma aula tão curta e com tanta coisa para processar, comparar, sintetizar, redigir, é básico que tanto professores como estudantes estejam muito bem preparados. É preciso preparar-se para a aula: produzir material, pesquisar, pensar, produzir reflexões. Leitura, observação e reflexão são fundamentais. Além de muito trabalho e de muita concentração nas poucas horas de sala de aula, é preciso, para que a aula funcione, que tanto professor como estudantes dediquem no mínimo um tempo equivalente ao tempo em sala para as atividades extraclasse nas quais se amadurece, se consolida e se aprofunda o trabalho desenvolvido em sala de aula5. Desse modo as aulas tornam-se pontos de partida e pontos chegada dos diversos momentos do processo de ensino-aprendizagem. Em aula iremos propor questões, pensá-las, tentar descobrir a melhor maneira de equacioná-las, confrontar nossos caminhos e tentativas, ver até onde conseguimos chegar e tentar melhorar, sempre aperfeiçoando nossos procedimentos e nossos conhecimentos. Diante disso o bom professor não é aquele cujas aulas são tão bem organizadas que podem ser copiadas e transformadas em uma apostila para os alunos estudarem, lerem e passarem na prova. Ao contrário, é aquele que, em vez de despejar conteúdo/informação, pergunta. Faz perguntas, estimula/provoca os alunos a fazerem perguntas e orienta/facilita a caminhada dos alunos na busca por respostas. E problematiza essas respostas, para que tornem-se outras perguntas que gerarão mais respostas e mais perguntas. Se este trabalho é bem sucedido, se aprendemos a identificar as perguntas que fazem a diferença, as eventuais respostas irão transformar-se em novas perguntas e assim sucessivamente pela vida toda.
Por fim, a aula é também um constante processo de auto-avaliação no qual se precisa superar a histeria em torno da prova, da nota e da eventual reprovação. Embora os momentos de verificação de aprendizado existam e talvez até precisem ser ritualizados, o fundamental é existir uma avaliação permanente que seja ao mesmo tempo uma auto-avaliação permanente. Isso, claro, é coisa que ainda precisamos (alunos e professores) aprender a realizar6.