Recordações dos tempos sob a ditadura instalada pelo golpe de 1964.

31 de março de 1964. Comandos militares iniciam os deslocamentos de tanques que irão deflagrar, em 1° de abril, o golpe militar de 1964, dando início a uma ditadura militar e empresarial que iria durar 21 anos prendendo, matando, torturando, “desaparecendo”, perseguindo, atemorizando brasileiros e brasileiras de todas as idades, sexos, classes sociais, profissões, moradores das capitais e grande cidades ou de pequenos povoados e do meio rural. Eu era criança, um mês depois faria 5 anos. Meu pai foi preso algumas semanas depois. Estava num baile, com minha mãe, quando chegou um jeep com um sargento e dois soldados e levaram meu pai. Nos dias seguintes, minha mãe nos pegou, eu e minha irmã de três anos, e fomos para Porto Alegre, onde ela deixou minha irmã com a mãe dela, nossa avó. E então, por um mês e meio, minha mãe peregrinou de quartel em quartel no Rio Grande do Sul, comigo pela mão, procurando por seu marido, o meu pai.

Meu pai não foi preso, foi desaparecido. Não tinha registro, não tinha mandado, não tinha ordem. Seu nome não estava em listas, ninguém sabia de nada, ninguém tinha nenhuma informação a dar. E a gente pegava ônibus e ia, de uma cidade pra outra, de uma porta de quartel pra outra. A mãe batia nas portas, esperava horas, era ameaçada, perguntava, implorava. E nada.

O que ele tinha feito para ser preso? Ele era um “subversivo”? Quando foi estudar em Porto Alegre ele participou do movimento estudantil secundarista, foi presidente do Grêmio de Estudantes do Julinho, o tradicional Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Era brizolista, filiado ao velho PTB. Era do diretório municipal do partido, havia ajudado a eleger o lendário Jair de Moura Calixto prefeito de Nonoai.

Como tantos outros, meu pai desapareceu em 64. A gente já não procurava mais nos quartéis. Minha buscava ajuda com os amigos da família que pudessem ter alguma maneira de buscar uma noticia, uma informação, o que quer que fosse. O medo era grande, o terror de Estado se instalara. Todos tinham medo.

E então, três meses depois de desaparecer, meu pai reapareceu. Foi largado na rodoviária de uma cidade próxima, lhe deram dinheiro pra passagem e disseram para esquecer que aquilo tinha acontecido.

Meu pai não esqueceu, minha mãe não esqueceu, minha irmã não esqueceu, eu não esqueci. Nossa família não esqueceu. Muita gente não esqueceu. Muita gente continuou lutando pela democracia. Continuamos ate hoje. Continuaremos enquanto for necessário. Não vamos deixar esquecer. Ditadura nunca mais!

Mexendo em antigos álbuns de fotos encontro um papel dobrado e amarelado. Uma certidão registrada em cartório com um salvo-conduto, para que meu pai pudesse viajar sem “ser molestado por fatos de ordem politica e social ocorridos anteriormente”.

Datado de maio de 1964, este salvo-conduto lhe permitiu voltar pra casa e retomar a vida. Levaram meses averiguando até decidir que “nada consta contra si”.

Coisas me intrigam: por que ele registrou em cartório, em 17 de junho, o documento assinado em 16 de maio por um coronel da Brigada Militar? Por que em maio de 1977 ele resolveu ir ao cartório buscar cópia desta certidão? Por que ela estava perdida num álbum de fotografias?

Salvo-conduto

O detalhe:

A imagem está difícil de ler, então vou transcrever aí embaixo o teor do Salvo-conduto:

Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Brigada Militar do Estado. Delegacia Especial Regional de OPS. Comando do Destacamento Volante. Salvo-Conduto. Pelo presente salvo-conduto expedido a favor de CLETO DOS SANTOS, brasileiro, casado, nascido a vinte e cinco de junho de mil novecentos e trinta e cinco, residente em Nonoai, portador da Cartéira de Identidade Profissional expedida pelo Juiz de Menores de Sarandi, atesto que o mesmo foi ouvido nesta Delegacia Regional que nada consta contra si e que o mesmo não deve ser molestado por fatos de ordem política e Social, ocorridos anteriormente a esta data podendo o mesmo deslocar-se livremente dentro e fora do Estado. Acantonamento, em Erexim, 16 de maio de 1.964. (as) Gonçalino Curio de Carvalho, Del. Esp. Reg. Cmt. Dest. Volante. Cel. Cmt.

É só uma história de família, o que se passou com um cidadão comum na ditadura. Milhões de brasileiros e brasileiras têm histórias similares e mais graves pra contar.

Por exemplo:

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