” se chuvas são fenômenos naturais, enchentes são fenômenos sociais”.  

Uma proposta de pesquisa muito interessante, que foca a cidade como espaço ao mesmo tempo político e ecológico e busca novas formas de compreender a cidade na história ambiental: Cidade alagada: chuvas de verão, classe e Estado no Rio de Janeiro 1966-1967.

Tendo como fato histórico concreto as chuvas de janeiro de 1966 no Rio de Janeiro, a pesquisa planeja responder a três perguntas principais:

“primeiro, em que medida as chuvas se tornaram parte do cotidiano da cidade, um desastre esperado e temido? Segundo, como as chuvas de 66/67 se inserem na memória da cidade, estabelecendo a enchente não como um desastre natural, mas como incapacidade do Estado de cumprir seu papel? E, terceiro, de que forma os diversos setores da população – governo, flagelados, igreja, setores técnicos – negociam através da imprensa os significados das enchentes, e lutam por seus próprios projetos de ocupação do espaço político e do espaço urbano.

Estas questões de história urbano-ambiental e sócio-espacial conduzem à discussão de processos mais complexos das relações entre Estado, cidade e sociedade e são bem importantes para entender as dimensões eco-políticas e sócio-espaciais dos processos de urbanização desigual, desordenada, excludente e segregadora das cidades brasileiras. Como bem diz a autora,

” se chuvas são fenômenos naturais, enchentes são fenômenos sociais“.

Este texto, de Lise Sedrez, encontrei perguntando para o Google sobre as enchentes de 66 no Rio, que nunca saíram da minha memória. Não tenho mais informações sobre a autora ou a pesquisa. O nome de Lise Sedrez aparece no rodapé da página, ao lado de uma filiação institucional à California State University e do endereço eletrônico da Lise ( lsedrez@csulb.edu). E o texto tem a seguinte URL: http://www.uel.br/prograd/maquinacoes/art_5.html, que me remete à UEL, Universidade Estadual de Londrina.

Mas o que importa é que o texto é bom e a proposta de pesquisa melhor ainda.

Cidade alagada: chuvas de verão, classe e Estado no Rio de Janeiro 1966-1967

Lise Cedrez

Em janeiro de 1966 a pior tempestade do século paralisou o Rio de Janeiro. Quase 250 mm de chuva caíram sobre a cidade em menos de 12 horas, inundando suas artérias principais. Deslizamentos de terra nas favelas causaram mais de 140 mortes. Os cariocas enfrentaram racionamento de gás, energia e água, contaminada por esgoto transbordando das galerias de águas pluviais. Até o Carnaval ficou ameaçado, e quase não saiu naquele ano.

As chuvas de 1966 evidenciam a sobreposição das políticas locais e nacionais. O governo da cidade do Rio de Janeiro, ou Estado da Guanabara, era um símbolo nacional de resistência contra a ditadura militar, mas também era o alvo mais provável da justa ira da população. As enchentes foram também um poderoso alerta sobre a vulnerabilidade do Rio para as chuvas de verão, especialmente para a camada mais pobre dos seus quatro milhões de habitantes. Seja nas favelas empoleiradas nos morros, ou espalhadas nas planícies das margens da Baía de Guanabara, os pobres do Rio eram as principais vítimas das chuvas anuais.

Minha pesquisa, ainda em estágio inicial, sugere que as chuvas de verão do Rio de Janeiro se tornaram, após 1966, um elemento constante no panorama político. Chuvas em 1970, 1980 e 1988, ainda que menos impressionantes em relação ao volume de águas, provocaram apaixonados debates sobre a responsabilidade do governo em prevenir desastres e remediar suas conseqüências. A pesquisa propõe entender como os chamados desastres naturais, e em particular as tempestades de verão do Rio de Janeiro, calamitosos que sejam, eram vistos pela população e pelo Estado como momentos privilegiados de negociação para suas necessidades e seus projetos na criação do espaço urbano.

Este trabalho se insere numa historiografia crescente sobre o impacto de desastres naturais na América Latina. Trabalhos recentes sobre El Niño e as secas no século XIX, ou os terremotos em Lima colonial, mostram que, se por um lado, calamidades deixam uma marca profunda na memória nacional/regional como momentos excepcionais, por outro lado evidenciam as fragilidades estruturais das sociedades e instituições latino-americanas em sua relação com o meio físico.

No caso do Rio de Janeiro, a água sempre foi um problema crítico para a cidade, tanto na escassez quanto no excesso. Secas no século XIX convenceram D. Pedro II da urgência de proteger os mananciais do maciço da Tijuca, tomado por fazendas de café – e daí surge o projeto de reflorestamento da Floresta da Tijuca, por exemplo. Mas secas, que se arrastam por semanas antes de serem identificadas claramente como calamidades, carecem da dramaticidade das chuvas repentinas de verão, que tudo arrastam de um dia para o outro. Cronistas e viajantes testemunham vários destes momentos dramáticos de enchentes desde o século XVI. Sejam como simples “cabeças d’água”, rios que transbordavam do seu leito, ou as mais ameaçadoras combinações de ressacas, marés altas, as chuvas permitiam que pântanos e lagoas retomassem a parte baixa da cidade, um espaço conquistado com demorados e custosos aterros. A partir da década de 1860, a combinação de chuvas e epidemias de febre amarela nos verões cariocas tornou a cidade indesejável para a elite carioca, que se refugiaria na serra de Petrópolis – se as estradas não fossem interrompidas pelas chuvas.

Se chuvas são fenômenos naturais, enchentes são fenômenos sociais. A partir do século XX, o impacto das enchentes se torna mais evidente no cotidiano da cidade. A cidade moderna, com suas ruas pavimentadas, prédios, concreto e asfalto, absorvia menos as águas pluviais do que a terra batida, os manguezais e as florestas que a precederam. E se chuvas normais já saturavam as galerias pluviais, chuvas excepcionais eram sinal de desastre. A população vivia ansiosa o início de cada ano, temendo as águas de janeiro, fevereiro ou março. De fato, chuvas excepcionais ocorreriam a cada cinco ou dez anos, de 1906 a 1962. Os pontos críticos de drenagem eram sempre os mesmos, os deslizamentos comuns, com ocasionais perdas de vidas humanas. Normalmente, os primeiros 30 minutos de uma tempestade eram decisivos para distinguir um simples temporal de um desastre urbano. Chuvas menos intensas, mas contínuas e além da capacidade de absorção do solo construído, podiam ter efeitos similares.

Finalmente, em 11 de janeiro de 1966, uma tempestade violenta atingiu a cidade, As chuvas fortes e letais continuaram por mais uma semana, e provocaram o total colapso do sistema de transporte, assim como um “apagão” elétrico quase completo. Como se não bastasse, no ano seguinte novas chuvas, em janeiro e fevereiro de 1967, igualmente excepcionais em dimensões, causaram mais de 100 mortes no Rio de Janeiro e traumatizaram a cidade.
A história das enchentes no Rio de Janeiro obviamente não se interrompe por aqui. Enchentes catastróficas na década de 70 ocorreram com intervalos menores, e os deslizamentos e alagamentos de ruas lembravam a população das enchentes de 66 e 67. Em 1981, o Rio recebeu em um único dia de verão 15% da precipitação média anual – resultando em completo caos na cidade. Mas mesmo quando as chuvas eram menos intensas, o dano à cidade era considerável e a Cidade Maravilhosa sofreu diversas enchentes notáveis durante as décadas de 80 e 90.

Como vimos, chuvas fortes de verão são regra e não exceção no Rio de Janeiro. Então, por que estudar as chuvas de 1966/67? Porque embora as chuvas pós-66/67 não tenham sido mais fortes nem mais freqüentes que estas, as conseqüências destas chuvas na cidade urbanizada de forma desigual foram cada vez mais críticas, e a população passa a perceber enchentes de uma forma diferente do que antes de 66/67.

Enchentes na Baía de Guanabara costumam atingir três áreas vulneráveis: as planícies da Baixada Fluminense, com um sistema de drenagem precário em uma área naturalmente pantanosa; os aterros próximos à Baía, com grandes favelas em palafitas ou não, e as favelas dos morros desflorestados, frequentemente localizadas próximas a bairros elegantes de classe média e alta.

Desabamentos nas favelas, na topografia muito particular do Rio de Janeiro, também atingiam os bairros mais ricos. O Rio é uma cidade segregada, mas é um tipo de segregação em que os pobres tomaram os morros, enquanto os ricos ocuparam as áreas baixas, próximas às praias. Ainda que socialmente distantes, praias e morros estão geograficamente próximos. Então, desabamentos nos morros significavam que esta segregação, precária mas de facto, era obliterada, e a vulnerabilidade habitacional dos pobres literalmente invadia as áreas mais ricas. Para uma cidade com 3,5 milhões de habitantes, na qual cerca de 600 mil viviam em favelas em meados da década de 60, esta era uma preocupação real.

Esta ruptura das barreiras sociais ocorreu literalmente em 1966, quando um deslizamento de terra, arrastando casebres e pedras de um morro, destruiu um prédio de classe média em Laranjeiras. Era só o começo. Saques, racionamento, colapso dos serviços de emergência (ou uma clara imagem de sua precariedade), lembravam aos moradores cariocas que a chuva era o menor dos seus problemas.

A chuva também caía em solo fértil para intrigas políticas. O recém-eleito governador Negrão de Lima era conhecido opositor ao regime militar. Seu antecessor no governo da Guanabara fora Carlos Lacerda, com forte influência sobre os jornais cariocas, que seriam a principal arena para o debate sobre o ônus político das chuvas de 66/67. Embora as chuvas de 66 não pudessem ser atribuídas a Negrão de Lima, quando elas se repetem em 67, periódicos como o Jornal do Brasil usam as enchentes incessantemente para acusar o governador de incompetência.

Mas se governo e oposição se digladiavam para incluir as chuvas na agenda política, através dos jornais, a população descobre em meio à calamidade um canal inesperado para antigas e mais amplas reivindicações. O temor de remoções forçadas, as queixas de abandono pelo poder público, a insegurança pela violência nas favelas, transparecem nas entrevistas dos flagelados das enchentes, e contrastam com as tentativas do governo de responder ao problema com relatórios técnicos, pontuais e específicos. Este é o debate que se inicia nas chuvas de 66/67, e que acompanha as enchentes das décadas de 80 e 90, com constantes referências às chuvas anteriores. As enchentes de 66/67 criam um marco; se não foram estritamente as mais fortes do século, os meios de comunicação as fixaram na memória da cidade, pelo próprio fato de usá-las como referência.

Nossa pesquisa planeja responder a três perguntas principais: primeiro, em que medida as chuvas se tornaram parte do cotidiano da cidade, um desastre esperado e temido? Segundo, como as chuvas de 66/67 se inserem na memória da cidade, estabelecendo a enchente não como um desastre natural, mas como incapacidade do Estado de cumprir seu papel? E, terceiro, de que forma os diversos setores da população – governo, flagelados, igreja, setores técnicos – negociam através da imprensa os significados das enchentes, e lutam por seus próprios projetos de ocupação do espaço político e do espaço urbano.

Em parte, estas questões são específicas para a história urbano-ambiental do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, elas discutem processos mais complexos das relações do estado, cidade e sociedade. No momento de crise, como no caso de enchentes, as contradições, fragilidades e alianças destas relações se tornam mais visíveis e explícitas. Ao estabelecer o foco no Rio de Janeiro como um espaço ao mesmo tempo político e ecológico, com suas dinâmicas de absorção e saturação tanto de intrigas políticas como de águas pluviais, espero propor novas formas de compreender a cidade na história ambiental.

Cidade alagada: chuvas de verão, classe e estado no Rio de Janeiro 1966-1967

Em janeiro de 1966 a pior tempestade do século paralisou o Rio de Janeiro. Quase 250 mm de chuva caíram sobre a cidade em menos de 12 horas, inundando suas artérias principais. Deslizamentos de terra nas favelas causaram mais de 140 mortes. Os cariocas enfrentaram racionamento de gás, energia e água, contaminada por esgoto transbordando das galerias de águas pluviais. Até o Carnaval ficou ameaçado, e quase não saiu naquele ano.

As chuvas de 1966 evidenciam a sobreposição das políticas locais e nacionais. O governo da cidade do Rio de Janeiro, ou Estado da Guanabara, era um símbolo nacional de resistência contra a ditadura militar, mas também era o alvo mais provável da justa ira da população. As enchentes foram também um poderoso alerta sobre a vulnerabilidade do Rio para as chuvas de verão, especialmente para a camada mais pobre dos seus quatro milhões de habitantes. Seja nas favelas empoleiradas nos morros, ou espalhadas nas planícies das margens da Baía de Guanabara, os pobres do Rio eram as principais vítimas das chuvas anuais.

Minha pesquisa, ainda em estágio inicial, sugere que as chuvas de verão do Rio de Janeiro se tornaram, após 1966, um elemento constante no panorama político. Chuvas em 1970, 1980 e 1988, ainda que menos impressionantes em relação ao volume de águas, provocaram apaixonados debates sobre a responsabilidade do governo em prevenir desastres e remediar suas conseqüências. A pesquisa propõe entender como os chamados desastres naturais, e em particular as tempestades de verão do Rio de Janeiro, calamitosos que sejam, eram vistos pela população e pelo Estado como momentos privilegiados de negociação para suas necessidades e seus projetos na criação do espaço urbano.

Este trabalho se insere numa historiografia crescente sobre o impacto de desastres naturais na América Latina. Trabalhos recentes sobre El Niño e as secas no século XIX, ou os terremotos em Lima colonial, mostram que, se por um lado, calamidades deixam uma marca profunda na memória nacional/regional como momentos excepcionais, por outro lado evidenciam as fragilidades estruturais das sociedades e instituições latino-americanas em sua relação com o meio físico.

No caso do Rio de Janeiro, a água sempre foi um problema crítico para a cidade, tanto na escassez quanto no excesso. Secas no século XIX convenceram D. Pedro II da urgência de proteger os mananciais do maciço da Tijuca, tomado por fazendas de café – e daí surge o projeto de reflorestamento da Floresta da Tijuca, por exemplo. Mas secas, que se arrastam por semanas antes de serem identificadas claramente como calamidades, carecem da dramaticidade das chuvas repentinas de verão, que tudo arrastam de um dia para o outro. Cronistas e viajantes testemunham vários destes momentos dramáticos de enchentes desde o século XVI. Sejam como simples “cabeças d’água”, rios que transbordavam do seu leito, ou as mais ameaçadoras combinações de ressacas, marés altas, as chuvas permitiam que pântanos e lagoas retomassem a parte baixa da cidade, um espaço conquistado com demorados e custosos aterros. A partir da década de 1860, a combinação de chuvas e epidemias de febre amarela nos verões cariocas tornou a cidade indesejável para a elite carioca, que se refugiaria na serra de Petrópolis – se as estradas não fossem interrompidas pelas chuvas.

Se chuvas são fenômenos naturais, enchentes são fenômenos sociais. A partir do século XX, o impacto das enchentes se torna mais evidente no cotidiano da cidade. A cidade moderna, com suas ruas pavimentadas, prédios, concreto e asfalto, absorvia menos as águas pluviais do que a terra batida, os manguezais e as florestas que a precederam. E se chuvas normais já saturavam as galerias pluviais, chuvas excepcionais eram sinal de desastre. A população vivia ansiosa o início de cada ano, temendo as águas de janeiro, fevereiro ou março. De fato, chuvas excepcionais ocorreriam a cada cinco ou dez anos, de 1906 a 1962. Os pontos críticos de drenagem eram sempre os mesmos, os deslizamentos comuns, com ocasionais perdas de vidas humanas. Normalmente, os primeiros 30 minutos de uma tempestade eram decisivos para distinguir um simples temporal de um desastre urbano. Chuvas menos intensas, mas contínuas e além da capacidade de absorção do solo construído, podiam ter efeitos similares.

Finalmente, em 11 de janeiro de 1966, uma tempestade violenta atingiu a cidade, As chuvas fortes e letais continuaram por mais uma semana, e provocaram o total colapso do sistema de transporte, assim como um “apagão” elétrico quase completo. Como se não bastasse, no ano seguinte novas chuvas, em janeiro e fevereiro de 1967, igualmente excepcionais em dimensões, causaram mais de 100 mortes no Rio de Janeiro e traumatizaram a cidade.
A história das enchentes no Rio de Janeiro obviamente não se interrompe por aqui. Enchentes catastróficas na década de 70 ocorreram com intervalos menores, e os deslizamentos e alagamentos de ruas lembravam a população das enchentes de 66 e 67. Em 1981, o Rio recebeu em um único dia de verão 15% da precipitação média anual – resultando em completo caos na cidade. Mas mesmo quando as chuvas eram menos intensas, o dano à cidade era considerável e a Cidade Maravilhosa sofreu diversas enchentes notáveis durante as décadas de 80 e 90.

Como vimos, chuvas fortes de verão são regra e não exceção no Rio de Janeiro. Então, por que estudar as chuvas de 1966/67? Porque embora as chuvas pós-66/67 não tenham sido mais fortes nem mais freqüentes que estas, as conseqüências destas chuvas na cidade urbanizada de forma desigual foram cada vez mais críticas, e a população passa a perceber enchentes de uma forma diferente do que antes de 66/67.

Enchentes na Baía de Guanabara costumam atingir três áreas vulneráveis: as planícies da Baixada Fluminense, com um sistema de drenagem precário em uma área naturalmente pantanosa; os aterros próximos à Baía, com grandes favelas em palafitas ou não, e as favelas dos morros desflorestados, frequentemente localizadas próximas a bairros elegantes de classe média e alta.

Desabamentos nas favelas, na topografia muito particular do Rio de Janeiro, também atingiam os bairros mais ricos. O Rio é uma cidade segregada, mas é um tipo de segregação em que os pobres tomaram os morros, enquanto os ricos ocuparam as áreas baixas, próximas às praias. Ainda que socialmente distantes, praias e morros estão geograficamente próximos. Então, desabamentos nos morros significavam que esta segregação, precária mas de facto, era obliterada, e a vulnerabilidade habitacional dos pobres literalmente invadia as áreas mais ricas. Para uma cidade com 3,5 milhões de habitantes, na qual cerca de 600 mil viviam em favelas em meados da década de 60, esta era uma preocupação real.

Esta ruptura das barreiras sociais ocorreu literalmente em 1966, quando um deslizamento de terra, arrastando casebres e pedras de um morro, destruiu um prédio de classe média em Laranjeiras. Era só o começo. Saques, racionamento, colapso dos serviços de emergência (ou uma clara imagem de sua precariedade), lembravam aos moradores cariocas que a chuva era o menor dos seus problemas.

A chuva também caía em solo fértil para intrigas políticas. O recém-eleito governador Negrão de Lima era conhecido opositor ao regime militar. Seu antecessor no governo da Guanabara fora Carlos Lacerda, com forte influência sobre os jornais cariocas, que seriam a principal arena para o debate sobre o ônus político das chuvas de 66/67. Embora as chuvas de 66 não pudessem ser atribuídas a Negrão de Lima, quando elas se repetem em 67, periódicos como o Jornal do Brasil usam as enchentes incessantemente para acusar o governador de incompetência.

Mas se governo e oposição se digladiavam para incluir as chuvas na agenda política, através dos jornais, a população descobre em meio à calamidade um canal inesperado para antigas e mais amplas reivindicações. O temor de remoções forçadas, as queixas de abandono pelo poder público, a insegurança pela violência nas favelas, transparecem nas entrevistas dos flagelados das enchentes, e contrastam com as tentativas do governo de responder ao problema com relatórios técnicos, pontuais e específicos. Este é o debate que se inicia nas chuvas de 66/67, e que acompanha as enchentes das décadas de 80 e 90, com constantes referências às chuvas anteriores. As enchentes de 66/67 criam um marco; se não foram estritamente as mais fortes do século, os meios de comunicação as fixaram na memória da cidade, pelo próprio fato de usá-las como referência.

Nossa pesquisa planeja responder a três perguntas principais: primeiro, em que medida as chuvas se tornaram parte do cotidiano da cidade, um desastre esperado e temido? Segundo, como as chuvas de 66/67 se inserem na memória da cidade, estabelecendo a enchente não como um desastre natural, mas como incapacidade do Estado de cumprir seu papel? E, terceiro, de que forma os diversos setores da população – governo, flagelados, igreja, setores técnicos – negociam através da imprensa os significados das enchentes, e lutam por seus próprios projetos de ocupação do espaço político e do espaço urbano.

Em parte, estas questões são específicas para a história urbano-ambiental do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, elas discutem processos mais complexos das relações do estado, cidade e sociedade. No momento de crise, como no caso de enchentes, as contradições, fragilidades e alianças destas relações se tornam mais visíveis e explícitas. Ao estabelecer o foco no Rio de Janeiro como um espaço ao mesmo tempo político e ecológico, com suas dinâmicas de absorção e saturação tanto de intrigas políticas como de águas pluviais, espero propor novas formas de compreender a cidade na história ambiental.

Lise Sedrez | California State University | lsedrez@csulb.edu

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