Importante, necessária, indispensável entrevista do cientista politico Luis Felipe Miguel a Erika Mohry no Carta Maior. Professor da UnB, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê) e pesquisador do CNPq, nesta entrevista Luis Felipe Miguel apresenta a conjuntura como um processo de demolição acelerada da democracia que vinha sendo construída a partir da Constituição de 1988:
“Estamos num processo em que a nossa democracia, que estava sendo construída com muitas dificuldades, está sendo demolida, aceleradamente. (…) Existe – da parte mais crítica do que existe de reflexão da política brasileira – um consenso de que a gente está vivendo um retrocesso muito grande em termos de construção de um regime democrático.”
O entrevistado destaca a necessidade de resistir à destruição do país pelo governo:
“Para que a gente seja capaz de impedir que esse governo destrua o país, a gente tem que ser capaz de passar do protesto à resistência, de fato. Isso é o que falta.“
Como exemplo da falta de resistência ele cita a nomeação de interventores nas universidades:
“Estamos protestando contra as intervenções nas universidades, mas não estamos resistindo contra as intervenções nas universidades.“
E para deixar ainda mais clara a diferença entre resistir e protestar LF Miguel faz uma referência a Ulrike Meinhoff:
“Ela não é uma pensadora muito recomendada, porque foi líder de um grupo terrorista, mas a Ulrike Meinhof tem um textinho chamado “Protestar ou resistir”. Ela fala que, tem um momento, em que você tem que passar do protesto, que é simplesmente a verbalização de uma inconformidade, e chegar à resistência, que é a busca do impedimento de que aquilo aconteça.“
O protesto, mesmo massivo, é insuficiente. Diante de um governo como o atual, que não escuta e não conversa, LF Miguel considera que mesmo as grandes manifestações, como os Tsunamis da Educação, são de pouca eficácia:
“A gente não vai conseguir vitórias com mobilizações episódicas. Fazer uma grande manifestação hoje e outra daqui a 45 dias. Isso já é uma demonstração de falta de organização mais contínua, mas ainda mais com esse governo, que é um governo que não responde à opinião pública. Se a gente tivesse um governo normal, se você põe aquela multidão de pessoas na rua, como pôs nas duas primeiras manifestações pela Educação, no primeiro semestre do ano, esse governo reagiria de alguma maneira. Esse governo não. Ele vê a manifestação como estímulo para sua maior agressividade.“
Aliás, diz LF Miguel, este é um governo obscurantisa e contra a educação:
“(…) a vitória do bolsonarismo nos coloca diante de algo que é inédito na história do país. Não é um governo que tenta controlar a educação ideologicamente, como nós já tivemos; não é um governo que se vê ameaçado pelos aspectos mais críticos da educação, como a gente já teve; não é um governo que subfinancia a educação, porque tem outras prioridades contábeis, como também enfrentamos várias vezes. É um governo que é contra a educação. É um governo que vê a educação como ameaça.
O que nós estamos enfrentando (…) em todo o sistema da educação, desde a pré-escola até a pós-graduação é um governo com o qual nós não temos a mínima possibilidade de diálogo. Nossas demandas são vistas como ameaçadoras. É um governo obscurantista, no sentido preciso da palavra. Que deseja que uma série de visões baseadas em mistificações sejam disseminadas pela sociedade, porque é isso que garante a sua base social.“
Perguntado sobre quem se beneficia do governo Bolsonaro, o entrevistado é direto:
“Objetivamente, o governo Bolsonaro beneficia os interesses estadunidenses no Brasil. Não é meramente simbólico bater continência para a bandeira dos EUA. Objetivamente, as decisões da política econômica e externa são orientadas para beneficiar os interesses da potência econômica que são os EUA, com a desnacionalização da economia, com a submissão à agenda desses interesses. São beneficiados alguns grupos religiosos, porque o Bolsonaro fez uma espécie de coalizão com eles. Você tem um reforço da autoridade sobre o rebanho. E são beneficiados, no curtíssimo prazo, alguns grupos proprietários. Digo no curtíssimo prazo, porque a política desse governo é tão desvairada que até aqueles grupos que seriam beneficiados – como o agronegócio – acaba pegando rescaldo da crise que o governo cria com os mercados compradores.“
E para finalizar destaco a passagem em que LF Miguel se refere à irracionalidade da política brasileira e cita como símbolo do empresariado brasileiro o “véio da Havan”, pseudo-liberal cujo negócio se expandiuà base de que vivem de sonegação fiscal e financiamento público:
“A irracionalidade é tamanha na política brasileira que a gente vê entre entusiastas do bolsonarismo vários empresários – a gente pensa que sendo empresários eles têm uma racionalidade econômica, que preside suas decisões – que estão sendo prejudicados pela política econômica. A gente pode pensar no que é o símbolo deles, o “véio da Havan”, com uma expansão da cadeia de lojas muito suspeita, feita à base de sonegação de impostos, num esquema de uso de muito recurso público – é curioso, porque ele tem um discurso ultraliberal, mas é o financiamento público que faz com que essa cadeia de lojas se expanda permanentemente. Se, em algum momento, ele precisar, de fato, sobreviver a partir de um grupo de consumidores, ele certamente estará perdendo, porque a gente tem uma pauperização, uma redução do poder de compra do salário, um desemprego muito elevado. Uma cadeia popular do varejo não sobrevive com na política econômica do bolsonarismo.“
Luis Felipe Miguel aborda ainda diversos outros assuntos, sobre a fragilidade das instituições, a normalização do autoritarismo na vida cotidiana, o papel da mídia e das redes sociais na destruição da democracia, sobre as características comuns dos governos de extrema-direita pelo mundo e também sobre o atordoamento da esquerda e da oposição.
Realmente indispensável a leitura da totalidade da entrevista. Muito boa mesmo.